Ecologia Urbana

Blog da disciplina de ecologia urbana, do 5º ano da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, docência do Professor Doutor Jacinto Rodrigues

31.1.07

Tibá - arquitecto Johan van Lengen


O artigo do Prof. Doutor Jacinto Rodrigues sobre o TIBÁ tem a extensão de 28 páginas. Coloco aqui alguns excertos... no entanto, o texto completo encontra-se disponível para download, na página do e-learning.

"(...)O autocarro parou na praceta da cidadezinha de Bom Jardim. Três quilómetros separam ainda a cidade da fazenda onde se encontra o TIBÁ – Centro de Tecnologia Intuitiva e Bio-Arquitectura, fundado pelo arquitecto Johan van Lengen.
Tibá, na língua dos índios Tupi, quer dizer lugar onde muitas pessoas se encontram.
Johan van Lengen e o filho, Marc, estavam à minha espera. (...)

"Um centro onde fosse possível formar uma cultura ecológica orientada em especial para a arquitectura e urbanismo sustentável. Mas seria um centro aberto à multidisciplinaridade, concebendo o desenvolvimento social numa interligação simultânea com o autodesenvolvimento."

Desde longa data que Johan começara a desenvolver uma investigação sobre novas metodologias de educação tendo como base a razão e a intuição, a arte e ciência. Durante os últimos anos Van Lengen abordara essas questões da nova pedagogia tendo como base a articulação sistémica entre o hemisfério esquerdo e o hemisfério direito.
O trabalho com psicólogos abrira-lhe novas perspectivas sobre o que denomina de inter-relação entre o estado Alfa e Beta, ou seja o aproveitamento das duas funções diferenciadas dos hemisférios cerebrais, através duma actuação que favoreça a integração das potencialidades globais do cérebro. Esta metodologia tem muito a ver com as mais recentes investigações da pedagogia e da neurociência, como as efectivadas, nomeadamente por Michel Fustier, Dominique Chalvin e António Damásio.

A vivência, e não apenas a erudição académica de Johan van Lengen, foram o ponto de partida para a criação dessa metodologia. É essa vivência, feita de aparentes contradições, de multiplicidade de culturas e línguas, que lhe forneceu a base dessa utensilagem pedagógica.
Nascido em Amesterdão em 1930, conheceu na infância e adolescência o drama da 2ª Guerra Mundial. A ocupação nazi e as dificuldades sociais da guerra preencheram as recordações do seu diário.
Os cadernos que conserva desses anos de meninice revelam já uma sensibilidade excepcional para o desenho.

Graças a um resistente anti-nazi aprendeu judo, desde a adolescência, tornando-se um especialista. Começou a dar aulas de artes marciais muito cedo. Essa formação no judo não foi uma mera aprendizagem técnica. Foi uma arte que lhe permitiu desenvolver um controlo corporal liberto de medos e angústias.
Procurando viver o presente, o agora, abriu-se à filosofia Zen com a leitura de Eugéne Herrigel e, tal como Trevor Leggett, conquistador de altas graduações no judo, aprendeu que “o pintor só saberá desenhar um corvo empoleirado num bambu, quando conseguir, à força de os observar e interiorizar, tornar-se ele próprio o corvo e o bambu agitado pelo vento, face ao vazio. Por isso, aprender a observar faz com que, com algumas pinceladas e num só movimento, a arte surja.”
É esta filosofia do estar presente no agora, que lhe permite o despertar.
A Holanda tornara-se um espaço exíguo para o seu imaginário aberto.
Nos princípios dos anos 50 foi para o Equador. Viveu atribuladas aventuras na floresta onde contraiu a icterícia. Restabelecido, graças a uma dieta de bananas, conseguiu um lugar no escritório do arquitecto Guillermo Cubillo, onde recebeu as primeiras noções de projecto. Interessa-se em especial pela construção, tendo acompanhado as actividades nos estaleiros, adquirindo uma sólida formação técnica. Naqueles anos, a orientação da arquitectura do pós-guerra pautava-se por uma estética moderna. Corbusier divulgava as novas regras da arquitectura.
Johan van Lengen parte para o Canadá para estudar na Universidade de Arquitectura de Toronto. Faz o curso com facilidade pois já tinha uma bagagem técnica apreciável, adquirida no trabalho que fez nos estaleiros e com o arquitecto Cubillo.
Do Canadá viaja para os Estados Unidos da América onde finaliza o diploma numa Universidade do Oregon, marcada pela escola da Bauhaus na versão americana de Gropius e Mies Van der Rohe.
Na arte era um apaixonado pela pintura abstracta de Mondrian. Ainda como aluno na universidade, traduzira do holandês uma obra desse pintor apresentando-a como um contributo para as provas do curso de arquitectura. Nesse período do início dos anos 60, as preocupações da arquitectura tecno-funcionalista dominam os seus projectos. Assim, em 1962 e 1963 trabalha na edificação de hospitais na Califórnia, preocupando-se especialmente com a ergonomia e a boa funcionalidade dos espaços. Isso reforça a sua formação racionalista que se consolidara com o interesse pelos trabalhos de Cristopher Alexander, que desde 1965, em Berkeley, desenvolvia as relações entre a matemática e as construções arquitectónicas. Os trabalhos de Cristopher Alexander prosseguiam as preocupações que Wittgenstein manifestara já nos anos 20. Johan van Lengen vai trabalhar em cooperação com o matemático na empresa de Arthur D. Little. Investiga também a utilização da informática na arquitectura e no urbanismo. Estabelece “matrizes” que permitem uma racionalização de vectores nas opções técnico-construtivas. Procura estabelecer diagramas de afinidades com o fim de projectar com maior funcionalidade.
Entretanto vai desenvolver na prática arquitectónica uma série de projectos e trabalhos que vão de supermercados ao planeamento de centros urbanos, universidades e conjuntos habitacionais nos E.U.A.

Um outra etapa está prestes a surgir. Em S. Francisco conhece artistas, psicólogos e homens de letras com perspectivas de inovação. Conhece Jacques Overhoff, também ele holandês residente nos E.U.A. e que faz experiências na escultura, mobilizando cidadãos para uma nova estética na cidade.
Em 1962 casa com Rose, uma pintora brasileira que conhecera no Rio de Janeiro. A pintura de Rose é uma pintura onírica e cujo lirismo reflecte muito a paisagem da América Latina e sobretudo a exuberância colorida do México, onde depois residem.
Nesses anos apaixona-se pela arquitectura brasileira, nomeadamente pelos trabalhos de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, que espelham uma maior sensibilidade plástica mesmo se ainda posicionados no movimento moderno.
As relações com o Brasil estabelecem-se cada vez mais frequentemente com as múltiplas viagens que realiza com Rose. Os problemas da arte, da pintura, e do desenho tornam-se também uma motivação pessoal na sua própria actividade criativa. Johan faz inúmeros desenhos e esculturas.
Além dessas actividades artísticas interessa-se pelas questões antropológicas. Chegou mesmo a frequentar um mestrado de antropologia na Universidade de Campinas, no Brasil, numa das suas estadias, que vai fazer cada vez mais frequentemente, entre Califórnia, México e Brasil.
No Rio de Janeiro, trabalha no escritório do arquitecto de reconhecida qualidade, Sérgio Bernardes, nomeadamente no planeamento da Universidade Católica de Curitiba. Esta sensibilidade moderna, lúdica e criativa da arquitectura brasileira permite-lhe articular a anterior formação técnica e construtiva com a nova abertura estética, mais plástica, da arquitectura brasileira.
Johan recorda o lado “bon vivant” de Sergio Bernardes e a postura sensível com que olha e trabalha com a arquitectura. Explica como diante dos organigramas informativos, o arquitecto Sérgio Bernardes imprimia traços a lápis de cor sobre o papel manteiga com que sobrepunha a planta topográfica devidamente sinalizada com os dados objectivos. Os traços coloridos do desenho sobreposto eram propostas com vida. E assim a arquitectura de Sérgio Bernardes ganhava uma outra dimensão artística sem deixar de manter uma informação quantitativa.
Johan conta assim como colaborou e aprendeu com este arquitecto brasileiro.
Por outro lado, as questões sociais vão-se impondo constantemente. E assim, uma maior flexibilidade intervém nos seus próprios projectos.
A nova aprendizagem da arquitectura e a nova experiência social vão-se consolidar numa espécie de segunda vida profissional que se impõe progressivamente.
Em 1977, quando se torna conselheiro da ONU para as questões do habitat e do urbanismo, os problemas da forma na arquitectura vão sofrer uma reviravolta substancial. Essa sua actividade como conselheiro exerce-se primeiramente no México.
A primeira fase profissional que tinha sido marcada pelo tecno-funcionalismo e o racionalismo da arquitectura moderna, centrava-se essencialmente na informação quantitativa. Nesta segunda etapa, estas referências fornecem dados para uma maior implicação artística no projecto. Acentua-se assim a influência da expressão artística da sua mulher, a cultura popular mexicana e a dos índios da Amazónia, que constituem os novos referentes para a problemática da sua arquitectura, cada vez mais marcada pelas preocupações ecológicas.
Um novo paradigma histórico emergente vai produzir as metamorfoses nas ideias, na tecnologia e na cultura de Johan van Lengen.
Ao instalar-se em Tepoztlan, a alguns quilómetros de Cuernavaca onde vivia o filósofo Ivan Illich que conheceu pessoalmente e de quem admirava a sua obra, nova reformulação se produziu nas suas concepções sobre energia e sobre desenvolvimento social. Acentuam-se as suas críticas ao paradigma dominante, abandonando as posturas eurocentricas, põe em causa o progresso linear e vai assumindo valores da interculturalidade e transculturalidade, sem pretensões de superioridades exclusivas. O convívio com a diferença abre-lhe novos horizontes.
Entretanto, aprofunda também o Budismo Zen, no contacto com os monges budistas que visita em Honolulu. E, quando vive na Califórnia, desloca-se a Oregon para visitar a comunidade do célebre guru indiano Bhagwan Shree Rasneesh, e é convidado a projectar algumas construções para o “rancho” onde vivem os principais membros desse grupo.
Ao visitar esta utopia que desponta no deserto, recorda a qualidade de alguns terapeutas que aí trabalhavam. Porém, rapidamente se dá conta dos impasses e desvirtuações desse grupo. Ficará contudo marcado pelas práticas meditativas e terapêuticas da escola de Bhagwan.
Viaja várias vezes ao oriente colaborando em congressos de arquitectura sustentável. Participa, num congresso de Nova Deli sobre questões sísmicas. Expõe algumas soluções para prevenir os estragos provocados pelos tremores de terra. Propõe a montagem dum pórtico de betão armado que consolide os edifícios e estabeleça simultaneamente um refúgio sólido para recolhimento das pessoas durante os sismos, que deveriam ser previamente assinalados graças a um sistema sonoro, sensível às primeiras manifestações sísmicas.
Este pórtico-refúgio deveria, segundo Johan van Lengen, ser obrigatoriamente exigido nas construções públicas nos países susceptíveis de tremores de terra.
Como Johan nos contou, estas suas viagens ao Oriente constituíam não apenas uma colaboração profissional mas resultavam também duma profunda atracção pela cultura espiritual do Oriente, em particular pelo budismo. Em algumas dessas conversas sobre as suas viagens ao Oriente, Johan relatou-me, comovido, as suas impressões numa das visitas à Índia: o sorriso de paz duma mulher pedinte, que encontrou em Benares, naquele estranho dia em que perpassava uma atmosfera de comunhão espiritual entre as pessoas. Morrera Indira Gandhi. Após a tragédia dos primeiros momentos, a multidão enfurecida, agitou-se tumultuosamente, procurando vingança. Mas a mulher do sorriso misterioso, a pobre pedinte de Madurai, continuava presente no seu espírito como uma espécie de êxtase que o deixara na maior perplexidade. No meio da confusão, no quase motim que agora se avolumava, ofereceram-lhe um farrapo de pano preto com o qual pôde manifestar a solidariedade pelo luto da Índia. E assim, Johan o ocidental, perdido na turba pôde salvar-se da fúria da multidão perturbada por aquele trágico acontecimento no sul da Índia.
Essas viagens ao Oriente levaram-no a santuários onde visitou Ashrams e lugares santos.
De volta ao México, onde continuava a trabalhar como conselheiro dum programa do Governo da Holanda conheceu também um arquitecto e artista genial, o jesuíta Cláudio Favier Orendain. Era um arquitecto misterioso que estudara profundamente as antigas construções pré-colombianas e procurava ajudar as populações a prosseguirem com as tradicionais técnicas do adobe. Os rurais das aldeias de Tlayacalpan só ficaram verdadeiramente convencidos do valor das construções de adobe e da sua criação identitária quando viram que o europeu as adoptara. Cláudio Favier construíra a sua própria casa de adobe com formas próprias daquela região. Este facto foi, para Johan, uma verdadeira lição antropológica pois só o reconhecimento por estranhos à cultura autóctone e local, permite a auto-estima necessária pelo interesse desse património. Depois deste gesto assumido por um estrangeiro, a população autóctone percebeu o valor da sua própria cultura, que até ali desprezava por viver na ilusão de valores que se instalaram contra os seus próprios interesses. Johan van Lengen explicou-me porque é que também ele optara, na reconstrução do Tibá, pela reutilização das estruturas pertencentes ao engenho da rapadura de cana de açúcar. Empregara, nessa reconstrução, ecotecnologias simples que pudessem fazer do edifício uma experiência demonstrativa.
Assim, o Tibá não rejeita as tradições construtivas quando bem feitas e exprime, na sua própria edificação, as tecnologias que aí se pretendem ensinar.

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Utilizando os “cascajes” Johan foi ampliando a ala poente para os ateliers de construção civil e os sanitários secos – os “basons”- que são propostos como tecnologia apropriada para as populações, constituem também as sanitas existentes no Tibá. Os tectos verdes que se ensinam a fazer são também generalizados na própria escola Tibá. E com os bambus que bamboleiam ao vento no interior da fazenda, construíram-se pontes e outras estruturas.

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A horta biológica que alimenta a cantina, revela o tipo de agricultura biológica e aponta para uma alimentação saudável. O processo dessa agricultura é baseado nas experiências do professor brasileiro de agronomia, Víctor del Mazo, que estabeleceu uma metodologia (mazu-humus) que consiste na utilização de minhocas californianas (eisenia foctida) que, revolvendo o estrume colocado em pequenos reservatórios, vão produzindo um fertilizante natural muito eficaz.
Uma rápida visita pelo casario pôs-me em contacto com as várias estruturas da casa: a biblioteca, a sala de meditação, os ateliers e a cozinha com o alpendre caramachão onde se fazem as refeições.

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É necessário referir ainda factores subtis que só agora a geobiologia parece estar interessada em estudar cientificamente. É o caso dos estudos da rede Hartmann e Curie que o Feng-Shui pressentia intuitivamente e que também os antigos construtores no Ocidente levavam em conta na arte da construção da arquitectura sagrada”.

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Esta metodologia, que já referimos, tem a ver com o trabalho profissional que exerceu ao longo de vários anos mas a que acrescenta uma pesquisa iniciada por Cristopher Alexander e que ele próprio desenvolveu com a ajuda de um matemático. A esta parte do seu trabalho chama de experiência em Beta. Trata-se de uma actividade necessária à investigação informativa e permite a segurança imprescindível para a etapa Alfa. Para esta etapa é imprescindível o período anterior pois a lógica investigativa estabelece nexos e informações que sistematizam metodologias e técnicas imprescindíveis no design, na arquitectura e no urbanismo.
O trabalho de Johan van Lengen baseia-se assim nos estudos recentes da neurociência. Os dois hemisférios cerebrais estão conectados por um grosso cabo de inúmeras fibras nervosas. Este dispositivo mediador faz a conexão entre cada um dos dois hemisférios diferenciados pelas suas funções:
a) O hemisfério esquerdo contempla os aspectos analíticos, privilegia a linguagem lógico-digital e expressa-se dum modo quantitativo e verbal. As ondas Beta hegemonizam essa zona cerebral;
b) O hemisfério direito contempla os aspectos globais, privilegia a intuição e a linguagem analógica e expressa-se dum modo qualitativo e gestual. As ondas Alfa hegemonizam essa zona cerebral;

Os estímulos do hemisfério esquerdo trazem sobretudo informações do exterior. Os estímulos do hemisfério direito expressam sobretudo motivações interiores, como os desejos, imagens e sonhos.
O curso de Johan van Lengen, a que ele deu o nome de Beta-Alfa é a organização duma metodologia pedagógica minuciosamente estudada através dum conjunto de exercícios que fortalecem ambos os hemisférios permitindo, simultaneamente a interacção sistémica dos mesmos. Trata-se de “Alfa+Betizar” harmonicamente as funções quotidianas a que o nosso cérebro está sujeito.

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Falou desse personagem excepcional do cinema francês, Jacques Tati, que realizou filmes inolvidáveis como “Mon Oncle” e “Les vacances de Mr. Hulot”. Conheceu Jacques Tati e deu-se conta do sentido da sua obra que era o de fazer “despertar” o homem adormecido que está em nós ou o homem máquina que constantemente pretende impor-se à criatividade .

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Através de cartazes explicitam-se problemas construtivos e suas soluções ecotecnológicas.
A sua actividade nesta divulgação pedagógica leva-o a fazer uma proposta de realização de um filme para o ensino de tecnologias apropriáveis. O filme ainda não foi realizado mas a proposta ganhou um prémio. Este filme teria o nome de “Jour de Fête” em homenagem, mais uma vez, ao realizador Jacques Tati e representaria de uma forma humorística em 16 cenas os processos simples de auto-construção realizada por um grupo de jovens.
Todas estas actividades culminaram na edição de um livroManual do Arquitecto Descalço” que já havia sido anteriormente editado, no México, em língua castelhana.
Prepara-se neste momento uma edição em inglês.
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No livro “Manual do Arquitecto Descalço” tecem-se considerações, duma forma extremamente simples, sobre os princípios fundamentais dum projecto.